"(...) Durante anos, porém, os passos do meu marido ecoaram como a mais sombria ameaça. Eu queria fechar a porta mas era por pânico. Meu homem chegava do bar mais sequioso do que quando fora. Cumpria o fel de seu querer: me vergastava com socos e chutos. No final, quem chorava era ele para que eu sentisse pena de suas mágoas. Eu era culpada por suas culpas. Com o tempo, já não me custavam as dores. Somos feitos assim de espaçadas costelas, entreameados de vãos e entrâncias para que o coração seja exposto e ferível. Venâncio estava na violência como quem não sai do seu idioma. Eu estava no pranto como quem segura a sua própria raiz. Chorando sem direito a soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer sobras. Como eu me habituei a restos de vida.
(...) Ao regressar a casa, faço contas às dores. Por certo, Venâncio me espera para me fazer pagar. Por isso, me demoro na varanda como se esperasse o vento chegar. E ali permaneço, calada, como fazem as mulheres que, de encontro ao tempo, rezam para nunca envelhecerem.
Quando entro em casa, os estilhaços do retrato rebrilham no chão da sala. O fotografado olhar de Venâncio pousa sobre mim, assegurando os seus direitos de proprietário. Distraída, a minha mão recolhe um vidro. Na cama de casal, meu marido está deitado, em fundo sono. Deito-me a seu lado e revejo a minha vida. Amanhã não irei à igreja. Se errei foi Deus que pecou em mim. Eu semeei, sim, mas para decepar. Se recolhi os grãos foi para os deitar no moinho. Há quem chame isto de amor. Eu chamo a cruel dança do tempo. Nessa dança quem bate o tambor é a mão da morte.
A vida é tão cheia de luz que olhar é demasiado e ver é pouco. É por isso que fecham os olhos aos mortos. E é o que faço ao meu marido. Lhe fecho os olhos, agora que o seu sangue se espalha, avermelhando os lençóis."
Mia Couto, in Os olhos dos mortos (Crónica da Pública)
A situação das mulheres em Portugal,
aqui
4 comentários:
um post brilhante!
cometa,
ainda bem que o pensas.Pq este post é feito de coisas brilhantes :)
Um quadro fortíssimo de Paula Rego e uma crónica que li há anos, de Mia Couto.
A força da imagem e das palavras num olhar sobre a crueza da realidade das mulheres. Em Portugal. No Mundo.
gosto muito de mia couto. :)
Vanessa,
eu também.Vou deixando algumas marcas dele por aqui:)
Beijinho
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